Quando eu era criança, o mês de agosto era chamado de “mês do cachorro louco” e nunca entendi direito o motivo. Talvez pelas campanhas de vacinação antirrábica que levava todos os vizinhos levarem seus animais de estimação à esquina em que a Kombi da prefeitura estava vacinando. O fato é que ao estudar o motivo descobri que as condições climáticas do mês favoreciam o cio das cadelas gerando esta concorrência canina nas ruas da cidade. Agosto também é, geralmente, um mês sem feriados nacionais e, ainda nesta rememoração da infância, odiávamos o mês que vinha logo após as férias de julho, porque não tinha um feriado sequer.
Para o nosso trabalho de análise estatística o fato de não haver feriados nacionais é bastante positivo pois ajuda na construção de painéis comparativos que permitem desprezar qualquer efeito espúrio de uma emenda de feriado na série histórica dos dados.
E foi isso que fizemos nesta análise do viés anual das pesquisas MAPA e ONDA que, desde abril de 2020, vêm sendo realizadas de forma contínua e ininterrupta pelo After. Lab, unidade de pesquisa e inteligência de mercado do Grupo Novo Meio.
Retomando brevemente a natureza dos dados coletados, perguntamos aos gestores das lojas de autopeças sobre quatro aspectos fundamentais do desempenho dos negócios: desempenho comparativo semanal em Vendas e Compras, completude dos pedidos (indicador Abastecimento) e variações de preços (indicador Preço).
Considerando que as informações retroativas semanais são um bom termômetro da prática cotidiana dos varejos de peças, desde a edição passada do Novo Varejo passamos a apresentar um gráfico comparativo entre os dois anos pesquisados (2020 e 2021) por região brasileira e o consolidado do Brasil. O que deve ser observado nestes gráficos é a tendência, considerando as quatro semanas de coleta dos dados. Dito isso, vamos aos gráficos.
Dimensão Abastecimento
Questionamos os respondentes sobre a completude dos pedidos, ou seja, a ruptura no abastecimento, considerando que do total de pedidos enviados quanto foi entregue completo, conforme o gráfico 1. Mas, como deve ser lido este e os demais que compõem esta análise? Os círculos nas barras verticais em vermelho indicam a média da variação mensal do critério em cada uma das regiões, e os traços horizontais são os limites superior e inferior de 1 desvio-padrão da média. A linha tracejada em preto na horizontal representa a média da variação no Brasil e serve para comparar o desempenho em cada uma das regiões brasileiras. Todos os valores apresentados são em percentual.
Assim, neste primeiro gráfico pode-se observar que, na média, o Abastecimento nas quatro semanas de agosto de 2020 (quadrante esquerdo do gráfico) foi negativo, ou seja, houve ruptura, mas inferior a 5%, sendo que as regiões Sul e Centro-Oeste apresentaram um nível de Abastecimento superior à média nacional (linha horizontal tracejada preta), as regiões Sudeste e Nordeste tiveram um desempenho muito próximo à média do país e que a região Norte apresentou o pior desempenho. Olhando para o quadrante direito do gráfico temos as médias das quatro semanas de agosto de 2021. Como o gráfico está representado na mesma escala, é possível observar uma profunda deterioração nos níveis de abastecimento. Se nas quatro semanas de agosto de 2020 a média de desabastecimento consolidado no Brasil estava por volta de -1,35%, passado um ano esta mesma média estava em -14,32%, como fica evidente no gráfico. A região Sudeste foi a que apresentou um desempenho melhor, mas ainda negativo em 2021, enquanto a região Nordeste foi a que apresentou a pior média e a maior dispersão como se observa nos limites superior e inferior do desvio-padrão.
Dimensão Preço
Se pelo lado do Abastecimento notamos uma deterioração bastante expressiva nas médias nacionais e regionais, no quesito variação de Preço, o cenário é um pouco menos impactante, mas ainda assim não muito animador. Se nas quatro semanas de agosto de 2020 a média nacional de variação de preços foi de 2,28%, no mesmo período de 2021 esta média chegou a 7,26% que, comparada à inflação acumulada nos últimos dozes meses aferida em agosto foi de 9,68%. Guardadas as devidas proporções, a inflação acumulada do mercado de reposição foi de 9,54%, refletindo o estado atual da economia brasileira. Se no ano de 2020 as regiões Sul e Sudeste apresentaram variação de preço inferior à média brasileira e o destaque negativo foi a região Nordeste, em 2021 as regiões Centro-Oeste e Sul foram as que apresentaram variação inferior à média nacional enquanto a Norte foi a mais impactada pela variação dos Preços, numa combinação de ruptura de Abastecimento e alta de Preços, extremamente nociva à saúde dos negócios, conforme apresentado no gráfico 2.
Dimensão Venda
Provavelmente um dos indicadores mais reportados em todos os níveis da cadeia de valor do mercado de reposição, e um dos que suscita mais interesse pois tem impacto direto nos negócios, à jusante e à montante das lojas de autopeças. Nota-se, na análise do Gráfico 3, uma certa acomodação na variação das Vendas médias mensais na consolidação dos dados em relação ao Brasil que, em agosto de 2020, foi de -1,48% e em 2021 alcançou -3.49%. Ainda que sejam considerados os dois pontos percentuais de diferença, cabe destacar que comparativamente aos demais indicadores como Abastecimento e Preços, é um certo alento esta variação menor.
Cabe destacar o bom desempenho da região Nordeste em ambas as medições, com indicadores positivos e superiores à média brasileira tanto em 2020 quanto em 2021. Por outro lado, as regiões Sul e Norte apresentam um comportamento distinto em cada um dos anos avaliados. Se em 2020 a região Norte apresentou desempenho positivo e superior à média brasileira, em 2021 apresentou a maior variação negativa. Oposto do que ocorreu com a região Sul que, em 2020, apresentou o pior desempenho em Vendas (-6,95%) e fechou o mês de agosto de 2021 com uma variação menor que a média brasileira, de -2,31%
Dimensão Compra
Em nossos estudos conjuntos sobre os efeitos simultâneos das dimensões estudadas nas pesquisas MAPA e ONDA, é a dimensão Compra que apresenta correlação estatisticamente significativa com as demais dimensões, o que nos levou a desenvolver algumas análises multivariadas específicas (como o path analysis) para entender melhor esta influência conjunta das Vendas, Abastecimento e Preços no comportamento de Compras, visto que teoricamente esta relação é possível, empiricamente também está se mostrando consistente. O gráfico 4 é o último desta análise e apresenta, como os anteriores, a média da variação percentual nas compras nos meses de agosto de 2020 e 2021.
Podemos destacar que embora os valores médios brasileiros sejam negativos, houve uma pequena variação entre os dados de 2020 (-2,48%) para os reportados em 2021 (-1,33%), mas nada que justifique uma comemoração. Não obstante, a região Norte mostrou desempenho positivo nas médias dos dois anos avaliados, com destaque para a maior amplitude da variação no ano de 2021. Outro destaque foi a região Sul que apresentou um resultado médio positivo em compras no ano de 2021, de 1,63%.
Conclusão
Dizem que o pessimista enxerga um copo d’água meio vazio e o otimista o enxerga meio cheio de água. Sem leviandades ou estultices, o que temos diante de nós no mercado de reposição é uma situação que ainda inspira cuidado, atenção e reflexão. Indubitavelmente nosso mercado é resistente a crises, mas isso não permite que os olhos dos gestores não estejam, mais do que nunca, voltados à operação de seus negócios. Do mesmo modo que em tempos de seca os volumes das represas baixam e é possível encontrar coisas que os tempos cheios não mostram, a pandemia acendeu um sinal amarelo para todos: não há mais espaço para ineficiência, improviso e nossas famosas “gambiarras”. Aquele vendedor que era mais ou menos, aquele mecânico que não era lá essas coisas, está com os dias contados, e não escrevemos isso com alegria. O mercado mudou e vai mudar ainda mais.
Aqueles que esperavam um tsunami que fosse colocar o mercado de cabeça para baixo podem baixar a guarda. Estamos vivendo pequenos abalos sísmicos quase que diariamente e, assim como nossos irmãos chilenos e peruanos, quase não os percebemos mais. Pense como era seu negócio há 10, 15, 20 anos. O que você consegue perceber? Se ainda acha que está como antes, é melhor pensar novamente no que lhe espera para os próximos 2 a 5 anos.
Fonte: Novo Varejo