O Ano Novo não trouxe boas notícias para a já combalida indústria automotiva nacional, que sofrerá duríssimos reflexos da abertura do setor na China.
O fim de restrições à participação de montadoras estrangeiras nos seus próprios negócios, em solo chinês, foi confirmado pelo Ministério do Comércio e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (NDRC) do país, no último dia 28, e passa a valer a partir de 1º de janeiro de 2022.
Na prática, encerra-se um período de mais de duas décadas de estrangulamento, permitindo às gigantes europeias, japonesas e americanas uma maior participação comercial naquele que, hoje, é disparado o maior mercado do mundo.
“Grupos como a Volkswagen e a General Motors estão felicíssimos, afinal, não terão mais que dividir 50% de seus lucros com seus parceiros locais”, disse o analista da consultoria Automotive Foresight, Yale Zhang, diretamente de Xangai, para o jornal Industry Week.
Para quem não sabe como as coisas ainda funcionaram na China nos últimos 27 anos, vamos explicar de forma bastante simplificada: conhecida como “regra 50:50”, a legislação doméstica previa, desde 1994, que as montadoras estrangeiras que se instalavam no país só podiam fazê-lo através de parceiros locais, jamais detendo mais de 50% do controle acionário da operação. São as chamadas joint ventures.
“Com o fim desta barreira, as multinacionais ganharão independência, ao passo que as empresas chinesas perderão o fluxo de caixa que advinha dessas joint ventures, gradativamente”, prevê o analista da Automotive Foresight.
Quando foi aprovada, a “regra 50:50” visava proteger a indústria chinesa, possibilitando que ela tivesse acesso à tecnologia de ponta, pelas mãos da gigantes do setor que vinham se instalar atrás da Grande Muralha, e dando tempo para que o setor se consolidasse nacionalmente, antes de dar acesso irrestrito ao seu mercado para as marcas estrangeiras.
“Inicialmente, houve um grande incentivo para os fabricantes locais que, agora, têm condição de expandir seus próprios negócios de forma independente e ainda mais rápida”, avalia Zhang.
No Brasil, isso nunca foi notícia, mas é fato que, nos últimos anos, as multinacionais que se instalaram na China foram, paulatina e discretamente, enxugando suas áreas industriais. A Hyundai, por exemplo, fechou duas de suas sete fábricas chinesas.
Ao mesmo tempo, a PSA Peugeot-Citroën (agora parte da Stellantis, junto com a FCA Fiat-Chrysler) encerrou sua joint venture com a Changan Automobile e reduziu seus volumes de produção na parceria com a Dongfeng.
Todavia, é preciso reconhecer que, fora a Suzuki, que deixou a China como montadora em 2018, nenhuma das marcas estrangeiras pretende abrir mão de sua fatia neste mercado.
Pelo contrário, é provável que, a partir de agora, quando a “regra 50:50” deixar de valer, as gigantes do setor foquem o mercado chinês, deixando ainda mais à deriva países como o Brasil, onde as vendas seguem ruins e sem uma perspectiva de recuperação perdurável.
“O jogo da equidade começa para valer por aqui”, declarou ao Global Times o diretor do comitê de importação da associação chinesa dos distribuidores de veículos (espécie de Fenabrave de lá), Wang Cun.
“Ainda veremos muitas negociações e a alocação de capital dependerá da formatação de cada uma dessas joint ventures”, acrescentou, deixando claro que o fluxo de investimentos das gigantes do setor será desviado para a China.
Para Wang, marcas como a Mercedes-Benz e a BMW vão aproveitar seu prestígio e seu poder tecnológico para assumirem um controle cada vez maior dos seus próprios negócios.
Há cinco anos, a marca bávara havia confirmado que pagaria 3,6 bilhões de euros – o equivalente a R$ 22,6 bilhões – por uma participação adicional de 25% na sua joint venture com a Brilliance, a BMW Brilliance Automotive (BBA).
“Recebemos a abertura deste mercado e outras reformas como um novo gesto de boas-vindas. Nos últimos 18 anos, fomos muito bem-sucedidos no país, graças ao apoio das autoridades chinesas e o compromisso do governo da Província de Liaoning – que fica no nordeste da China – que são a pedra angular de nosso negócio”, afirmou o presidente do Board of Management do grupo, Oliver Zipse, em comunicado oficial.
A corrida para a Grande Muralha tem justificativa. É que, enquanto o mercado chinês tem uma expectativa de crescimento para 30 milhões de unidades anuais em 2025, não há nada que garanta, no Brasil, uma retomada dos números de uma década atrás.
E contrariando a expectativa de que as multinacionais vão seguir sozinhas, na China muitas delas já anunciaram que pretendem manter a parceria com as companhias locais, sem as quais – é bem verdade – não teriam os suportes técnico e de suprimentos de que dependem. Nunca é demais lembrar que a China terá o maior PIB (Produto Interno Bruto) do mundo consolidado, em 2030.
“As marcas estrangeiras já perceberam que estão emparedadas. Se, de um lado, o controle acionário lhes dará uma fatia maior na divisão dos lucros, do outro, elas se veem muito dependentes dos parceiros chineses. Não há como romper os laços”, pontuou o chefe de consultoria da IHS Markit para Ásia e Pacífico, James Chao, à agência Reuters.
A Reuters também ouviu de um executivo sênior da General Motors, que pediu para não ser identificado, que a GM “não cortará laços” com sua parceira doméstica, a SAIC Motor e que a companhia reconhece que “não teria tanto sucesso na China por conta própria”.
Logo em seguida, um comunicado oficial da GM confirmou que seu “crescimento na China é resultado do trabalho com os parceiros da joint venture e que continuará com eles. A confiança e o trabalho com nossos parceiros é que nos permite fornecer produtos e serviços de alta qualidade aos consumidores chineses”.
No mesmo sentido, a Honda disse, através de um assessor, que não pretende mexer sequer na composição societária de sua operação na China: “No momento, não temos planos de mudar nossa relação de capital”.
A Toyota é outra gigante que deixou claro em um comunicado, nesta semana, que não tem nenhum plano para explorar novos parceiros locais ou buscar estabelecer um negócio exclusivo na China. Hoje, a marca japonesa tem dois parceiros estatais chineses, a FAW e a GAC.
“Acho que, para a maioria das joint ventures, não ocorrerá uma mudança rápida, logo após a abertura, pois ainda existem contratos de longo prazo a serem cumpridos”, pondera Wang Cun, da Associação chinesa dos Distribuidores de Veículos.
“Hoje, o mercado chinês não é só o maior do mundo, mas também o mais competitivo e vemos que marcas domésticas, como a BYD e a Geely, ganham terreno, enquanto a participação de muitas joint ventures vem diminuindo”, complementa.
Vale citar que, desde 2018, a China já havia aberto seu mercado para os fabricantes de modelos elétricos. Foi em julho daquele ano que a Tesla iniciou seu casamento com o governo de Pequim e, de lá para cá, o país recebeu grandes investimentos estrangeiros para implantação de fábricas voltadas à eletromobilidade.
“Neste segmento, notamos um avanço importantíssimo, seja nos produtos desenvolvidos e produzidos pelas joint ventures, seja na política de preços que vem, constantemente, pressionando os fabricantes chineses para serem mais competitivos”, enfatiza o secretário-geral da Associação local dos Carros de Passeio (equivalente à Anfavea brasileira), Cui Dongshu.
Prova disso é que, em 2020, a Mercedes-Benz e a Geely anunciaram uma joint venture global para a eletrificação da marca Smart.
Ou seja, enquanto o Brasil é assombrado por velhos fantasmas, como o do comunismo, que não assusta mais ninguém com instrução primária, a China, que há 35 anos tinha PIB menor que o nosso e uma participação no comércio exterior equivalente à metade da brasileira, segue atropelando norte-americanos, britânicos e japoneses, desaparecendo no horizonte dos brasileiros.
Enquanto nos preocupamos com pautas de costumes, até a África vai abrindo vantagem. É o custo da imbecilização…
Fonte – Por Homero Gottardello para Mobiauto
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente a opinião da Mobiauto e do Movenews.