O contexto externo segue deteriorando, com indícios de desaceleração do crescimento global e um ambiente de fortes e persistentes pressões inflacionárias em função do excesso de liquidez, fruto da resposta fiscal e monetária dos países à crise sanitária da Covid – tudo isso, além dos frequentes aumentos nos preços das commodities e rupturas nas cadeias de suprimentos. Como consequência, países desenvolvidos aceleram o aperto monetário com elevação da taxa básicas de juros, ocasionando maior adversidade nas condições financeiras com reprecificação de ativos e aumento da aversão a riscos, resultando em maior incerteza e volatilidade, particularmente nos países emergentes, como o Brasil.
Neste ambiente adverso, nosso país sofre para amortecer os impactos nos sucessivos aumentos de preços dos combustíveis e, dessa forma, no controle da inflação. No que tange a Petrobras, seu atual modelo de governança e políticas de preços não oferece uma resposta efetiva para que o Governo (acionista majoritário e representante da sociedade), apresente uma solução sensível aos anseios dos brasileiros. Importante destacar que a Petrobras é uma empresa de economia mista, com presença dominante em diversos seguimentos do abastecimento nacional – detendo, assim, uma missão de utilidade pública. Obviamente, a empresa precisa ter lucro, remunerar adequadamente seus investimentos, ter capacidade de realizar novos investimentos em áreas estratégicas e ser competitiva. Porém, por ser uma companhia estatal, precisa também equilibrar estes interesses com os anseios da sociedade, especialmente neste momento de crise.
Muitas cartas estão em jogo com a mais recente intenção de acelerar a privatização da Petrobras em meio a um choque nos preços dos combustíveis. Por um lado, há quem repudie fortemente a possibilidade, defendendo a continuidade do modelo atual e, ainda mais, promete revisitar o que já foi privatizado em prol da preservação de empregos das diversas categorias envolvidas, com a preservação do patrimônio nacional no esteio da conservação do modelo estatal.
De outro, existem os que defendem a privatização para desenvolver um mercado mais dinâmico, mais aberto e com maior concorrência, que propicia novos investimentos e desenvolvimento socioeconômico – além de possibilitar preços de derivados mais acessíveis em toda a cadeia. Considerando um horizonte de médio a longo prazo, a privatização, desde que feita de forma planejada, coordenada e harmônica, pode, de fato, trazer grandes benefícios socioeconômicos para o Brasil e, certamente, para o setor de petróleo, gás natural e biocombustíveis.
A Petrobras, apesar de não estar presente diretamente na distribuição e revenda de combustíveis, continua como garantidor do abastecimento nacional através de um modelo gestão centralizado e integrado, com acompanhamento diário dos diversos setores da cadeia: Exploração/Produção (Upstream), Refino/Gás Natural (Midstream) e na Distribuição/Revenda (Downstream).
No Upstream, com a entrada de diversas novas operadoras na região do polígono do pré-sal, no offshore convencional (regiões fora do polígono do pré-sal, novas fronteiras e campos maduros), ainda exerce uma posição dominante, respondendo por aproximadamente 74% da produção nacional de petróleo (3.8 milhões de barris equivalente de petróleo/dia), além de controlar as principais rotas de escoamento de petróleo do offshore para o onshore. Espera-se que esta participação venha a ser diluída progressivamente com a entrada de novos operadores e inúmeros projetos de exploração e produção já contratados, resultados dos últimos cinco anos de leilões de áreas exploratórias.
No Midstream, o programa de desinvestimentos da Petrobras busca, ainda que de forma lenta, ampliar a diversidade de agentes no segmento, principalmente com a venda de 50% do seu parque de refino (aproximadamente 1,148,738 barris/dia), bem como nos segmentos de gás natural, como a venda de ativos no transporte e distribuição, além de ampliar a garantia de acesso de terceiros a infraestruturas essenciais (UPGNs – Unidades de Processamento de Gás Natural/Terminais de regasificação). E, finalmente, no Downstream, como já mencionado, onde a Petrobras já não atua diretamente na distribuição após a venda da BR distribuidora, hoje Vibra Energia.
O movimento de desinvestimentos da Petrobras foi, em parte, motivado pelo CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, através do TCC (termo de conduta de cessação) assinado em meados de 2019, e parte por mudanças na estratégia da empresa, as quais caminham na direção de desenvolver um mercado de petróleo, gás natural e biocombustíveis mais dinâmico, competitivo e aberto em todos os elos da cadeia: do poço ao posto.
Entretanto, o processo impacta a transformação do mercado. Seria muito importante acelerar o programa de desinvestimentos da Petrobras ou mesmo sua privatização para que possamos alcançar, na próxima década, um mercado mais eficiente, dinâmico e competitivo. Importante destacar que, sem que haja um plano de transição bem completo, que contemple aspectos operacionais/logísticos, concorrenciais e tributários, pode haver riscos para o abastecimento nacional, gerando resultados indesejados para o mercado e para o Brasil. Adicionalmente, é importante que haja mudanças no atual arcabouço regulatório e implementação de novas políticas públicas para garantir uma transição eficiente, onde deve surgir a figura de um gestor do abastecimento nacional a exemplo da ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) no setor elétrico, que assumiria o papel que hoje em grande parte é feito pela própria Petrobras e a ANP.
Afinal, com o programa de desinvestimentos da Petrobras ou sua privatização, espera-se que o novo modelo de abastecimento nacional, não necessariamente “centralizado e integrado” através do sistema Petrobras, consiga garantir o abastecimento nacional de forma mais eficiente – e, ao mesmo tempo, crie um mercado onde a sociedade seja beneficiada com preços competitivos, novos investimentos e inovação, resultando em geração de empregos, aumento da renda e desenvolvimento socioeconômico. Assim, como dizem alguns, onde existe crise também existe oportunidade. Estamos diante de um momento oportuno para refletir sobre o processo de privatização da Petrobras, onde o diálogo entre Governo, Congresso, Órgãos de Controle e Agências Reguladoras, além dos diversos segmentos da sociedade podem produzir uma transformação importante para setor de petróleo, gás natural, biocombustíveis e para o Brasil.
Felipe Kury é ex-diretor da ANP.